Excelente artigo da Der Spiegel sobre a maneira como o Kremlin percebe a situação da Crimeia. Recomendo a leitura, sobretudo a meus alunos de Relações Internacionais. Muito interessante o fato de, como assinala o texto, a popularidade de Putin ter saltado de 67% à época dos jogos de Sochi para cerca de 80% hoje. Isso significa o apoio que o governante tem da população, que o vê como um líder forte e obstinado (exatamente do que os russos gostam…). Note-se, ainda, que até Gorbachev, prêmio Nobel da Paz, e último dirigente da União Soviética, fala em defesa de uma Crimeia na Federação da Rússia.
As perguntas centrais do artigo também merecem reflexão: a “reunificação” da Crimeia é apenas mais um movimento contrário à redução da Rússia à condição de potência regional, em uma tentativa de recuperar a influência da época soviética, ou se trata do começo de uma série de “reconquistas” de um país que há séculos se vê como a potência hegemônica da Europa Oriental? Seria Putin um neoimperialista ou um líder que, colocado contra a parede pelas pressões domésticas e pelos desafios externos, mostra-se decidido em proteger os interesses de segurança nacional de seu país?
Outra questão interessante se refere à percepção estratégica para a Defesa da Rússia diante da OTAN. O artigo assinala com propriedade que, nos tempos da União Soviética, a distância entre Moscou e as linhas da OTAN era de 1.800 km. Caso a Ucrânia ingresse da Aliança Atlântica (como desejam os EUA), essa distância se reduzirá a 500 km, e a Rússia perderia a “profundidade estratégica” tão relevante e que a protegeu das invasões de Napoleão e Hitler… Sete décadas após o fim da II Guerra Mundial, essa preocupação se mantém presente no imaginário daquele povo e na doutrina militar russa. Nesse sentido, continuo achando que o ingresso da Ucrânia na OTAN seria não só humilhante, mas inaceitável para Kremlin (e com razão, se considerarmos a perspectiva russa).
Destaco, por oportuno, a parte do artigo que se refere às possibilidades russas diante da crise e das restrições que lhe são feitas pelos ocidentais. No que concerne à Ucrânia, Putin tem o tempo e as populações russas naquele país a seu favor. Afinal, apesar das reticências do governo de Kiev, o país ainda é muito dependente de seu irmão-maior eslavo, e a minoria russa na Ucrânia é expressiva. Em termos de potências ocidentais, parecem que estas têm mais a perder do que a Rússia em uma queda de braço com Moscou. A economia européia depende mais da energia russa que os russos do comércio com a Europa.
Finalmente, em se tratando de oportunidades, restrições ocidentais à Rússia podem fazer com que o maior país do mundo se volte para a Ásia, com novas parcerias com a China e a Índia (ambos que necessitarão, cada vez mais, de energia e matéria-prima que os russos têm de sobra). Nesse contexto, oportunidades podem surgir também para países mais afastados, como o Brasil. A falta de posicionamento do governo brasileiro nesta crise pode ser, em última instância, positiva para os interesses econômicos e geopolíticos do Brasil – desde que saiamos, alguma hora, da inércia.
Continuo acreditando que a anexação da Crimeia pela Rússia é fato consumado. Muito difícil reverter essa situação. O jogo, porém, não acabou. Ainda há muitas peças neste tabuleiro, e nenhum dos reis está nem de longe em xeque. Enquanto acompanhamos os movimentos, aproveito para lembrar que os russos são conhecidos por sua habilidade no xadrez…

‘Dear to Our Hearts’ – The Crimean Crisis from the Kremlin’s Perspective
By Matthias ScheppThe EU and US have come down hard on Russia for its annexation of the Crimean Peninsula. But from the perspective of the Kremlin, it is the West that has painted Putin into a corner. And the Russian president will do what it takes to free himself.
Last September, Vladimir Putin invited Russia experts from around the world to a conference, held halfway between Moscow and St. Petersburg. At the gathering, the Russian president delivered a passionate address. “We will never forget that Russia’s present-day statehood has its roots in Kiev. It was the cradle of the future, greater Russian nation,” Putin said. He added that Russians and Ukrainians have a “shared mentality, shared history and a shared culture. In this sense we are one people.”