Napoleão e os cães

Fazia pouco tempo que os porcos haviam retornado ao poder na granja, a “Fazenda dos Animais”. Haviam sido os senhores absolutos daquela propriedade e dos seres que ali viviam por treze meses, mas sua própria incompetência gerencial e os abusos contra o que deveria ser patrimônio de todos daquela comunidade fizeram com que fossem substituídos pelos cães pastores. Esses, por sua vez, realizaram reformas importantes e conseguiram fazer com que a propriedade voltasse a funcionar e desse lucro.

Ao final de seis meses, porém, os cães seriam substituídos pelos porcos, ansiosos para voltar a usufruir dos benefícios da condição de dirigentes. Uma vez na direção da fazenda, os suínos desejavam se vingar e fariam de tudo para não cometer os erros que os haviam afastado do poder…

Napoleão, o grande responsável pelas mazelas que levaram à queda dos porcos, e que tivera mesmo que se esconder por um tempo da fúria dos bichos da granja, precisou construir alianças com outros grupos de animais para voltar ao comando dos destinos da propriedade. Desse conchavo participaram obviamente os porcos, mas também os corvos, as raposas e até mesmo alguns cães fiéis ao porco castrado.

Assim, com ajuda de seus novos aliados e do galo sem crista André, muito respeitado por se dizer “conhecedor das leis da granja e o grande árbitro para resolver as disputas entre os bichos”, o velho líder conseguiu apear os cães do poder. Auxiliado diretamente pelos corvos, responsáveis pela difusão de notícias falsas entre na comunidade, fez com que todos acreditassem que o período de estabilidade e crescimento nunca existira, e que os cachorros e seu comandante, um mastim de nome Palmito, eram os grandes causadores das piores situações ali vividas desde que os humanos haviam sido expulsos pela revolução dos bichos.

Mas Napoleão não estava satisfeito apenas em retornar ao poder. Queria o controle absoluto do lugar, não admitindo a menor hipótese de os porcos voltarem a ser removidos da direção. Também queria vingança, o ódio o motivava, e, repita-se, o alvo principal de toda a sua fúria doentia eram Palmito e os outros cães. Para alcançar seus objetivos, o rufião e seus aliados deram sequência ao plano contra seus adversários caninos.

 Evento importante no projeto de poder dos porcos foi a invasão da sede da granja, no dia 1º de agosto. Naquela tarde chuvosa de verão, as ovelhas teriam entrado na casa principal e destruído tudo, em meio a protestos em que não reconheciam a autoridade dos porcos. Imediatamente, os corvos acusaram as ovelhas de vandalismo a serviço dos cães e André, do alto de seu poleiro, sentenciou que as ovelhas, definitivamente, eram culpadas. Muitas foram detidas e rapidamente executadas. E o argumento de alguns cães (inclusive daqueles que eram responsáveis pela segurança da granja) de que havia lobos infiltrados entre as ovelhas, os quais seriam os verdadeiros responsáveis pelos tristes acontecimentos, não conseguiam prosperar.

A narrativa que se construiu rapidamente era de que Palmito e seus companheiros haviam liderado as ovelhas naquele surto de violência. Medidas duras foram tomadas para que ninguém questionasse essa versão dos fatos. Qualquer animal da granja que ousasse considerar algo diferente para o que acontecera em 01/08, seria responsabilizado junto com as perigosas e nefastas ovelhas. E o cerco promovido pelos porcos se fechava…

Restavam, porém, os cães. Os cães haviam sido o fiel da balança em crises anteriores. Muitos apoiaram os porcos na expulsão dos humanos e dos animais dissidentes. A primeira guarda de Napoleão havia sido formada por cães que haviam sido recolhidos por ele ainda filhotes, e que o tinham como um pai. Entretanto, foram também os cães que apoiaram Palmito nos quatros meses em que dirigiu a granja. Assim, o grupo canino tinha partidários e simpatizantes dos dois lados, o que era intolerável para o porco castrado.

A solução para os problemas caninos de Napoleão viria propriamente de um cachorro. Godofredo, ou simplesmente Godô, era um vira-latas que desde filhote estivera junto a Napoleão. Apesar de pouco esperto, nada corajoso e muito antipático, havia alcançado a posição de chefe da guarda pessoal do grande líder. Sua principal característica, essencial para o posto em que se encontrava, era a fidelidade canina a Napoleão. Estava disposto a fazer tudo, absolutamente tudo o que o chefe mandasse, e não mediria esforços nessas tarefas. E foi assim que Godô entrou no plano contra os cães…

Passadas algumas semanas dos acontecimentos de 01/08, os corvos começaram a divulgar o testemunho de algumas galinhas de que Godofredo estava diretamente envolvido na invasão da sede da granja. De fato, a notícia que se propagava era que ele confabulara com algumas ovelhas e que colocara alguns cães do seu grupo (e não lobos) disfarçados de ovelhas para fomentar o quebra-quebra.

A notícia dos corvos causou um alvoroço entre toda a bicharada. “Absurdo isso que os cães fizeram!”… “Eles sempre estiveram unidos a Palmito!”… “Não dá para confiar nos cães!”… “Quer conhecer um cão, dê poder a ele!”… Com essas reações por toda a granja, Godô teve que fugir, automaticamente assumindo a culpa e consolidando a narrativa.

O passo seguinte seriam as medidas tomadas pelos porcos para alijar os cães da granja. Todos os cães. Todos, primeiro os partidários de Palmito, mas também aqueles que haviam optado por nada fazer quando os porcos retornaram ao poder de forma minimamente controversa. Todos os cães.

Mas e aqueles cães que permaneciam fiéis a Napoleão? Todos os cães. E quem faria a segurança do grande líder e da propriedade? E quem garantiria a estabilidade e a “paz social” entre os bichos? Quem teria o uso legítimo da força na “fazenda dos animais”? Certamente que não seriam mais os cães. E Napoleão já sabia como fazer essa substituição…

(Continua…)

Essa é uma primeira incursão minha na ficção. Espero que meus leitores apreciem o texto e a homenagem a George Orwell.

Inteligência para quê?

O ano de 2023 tem sido de grande discussão sobre um assunto ainda muito pouco conhecido da maioria dos brasileiros: a Inteligência. Pululam na mídia “especialistas” opinando sobre os problemas dos nossos serviços secretos e sobre o que fazer com nossas agências de inteligência. Há mesmo quem defenda o fim dessas organizações, as quais não seriam compatíveis com o regime democrático. E não são poucos os que se perguntam, inclusive entre tomadores de decisão de alto escalão, se realmente se precisa de serviços de inteligência. Mas, efetivamente, para que serve a Inteligência?

Um primeiro aspecto que deve estar claro é que inteligência e democracia são plenamente compatíveis. As grandes democracias do mundo têm serviços de inteligência, que operam reunindo dados e informações (inclusive aqueles cujo acesso é negado por seus detentores) e produzindo conhecimentos sobre fatos e situações que representem ameaças ou oportunidades ao Estado e à sociedade. Assim, os serviços secretos têm um papel essencial na defesa de interesses fundamentais de uma nação ao informar os tomadores de decisão com conhecimentos especializados que serão úteis, por exemplo, no planejamento de políticas públicas.

Desde que o mundo é mundo, há alguém interessado em obter conhecimentos protegidos de pessoas, organizações e países, bem como em influenciar o processo decisório em diferentes níveis. Nesse sentido, a segunda missão dos serviços de inteligência é a proteção desse conhecimento sensível contra a espionagem adversa. Isso se encontra na esfera da contrainteligência.

Diante dessa realidade, serviços de inteligência são imprescindíveis a toda nação que ocupe um papel de destaque entre seus pares. Com o Brasil não pode ser diferente, até porque o país é alvo de serviços estrangeiros que por aqui empregam seus agentes para espionar e influenciar processos. No caso brasileiro, entretanto, se não se pode abrir mão da Inteligência, é fundamental que se defina com clareza as tarefas dos distintos órgãos de nossa comunidade de inteligência.

Um último aspecto que deve estar claro sobre a Inteligência é que ela é função de Estado, devendo atuar em prol dos interesses nacionais e não a serviço deste ou daquele governo. Agência de inteligência que atue a serviço de um governo específico, ainda mais operando no âmbito doméstico de um país, tem grandes chances de virar polícia política e de envolver-se com atividades que cruzem a linha da legalidade.

Inteligência é, portanto, de extrema relevância para qualquer nação. Ingênuo é acreditar que, enquanto o leitor conclui estas linhas, não há serviços de inteligência estrangeiros operando no território brasileiro, tentando obter conhecimentos sensíveis e influenciar pessoas e organizações. Mais ingênuo ainda é achar que o Brasil não precisa de estruturas funcionais voltadas à produção de inteligência, assinalando aos tomadores de decisão oportunidades e ameaças.

Visto que inteligência é imprescindível, cabe agora definir o que se deseja dos serviços secretos brasileiros. Também é fundamental que suas tarefas sejam explicitadas e que haja diretrizes claras para a comunidade de inteligência. Por último, um controle eficiente, eficaz e efetivo da Inteligência constitui a base do bom funcionamento desses órgãos no Estado democrático. Só assim as agências de inteligência no Brasil terão razão de existir e a sociedade e o Estado brasileiros ficarão menos vulneráveis.

Nas próximas semanas, publicarei aqui alguns breves textos sobre reformas na área de inteligência. A ideia é discutir os destinos desse setor tão essencial à segurança da sociedade e à defesa do Estado democrático.

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*Joanisval Brito Gonçalves, Consultor Legislativo do Senado Federal para Relações Exteriores, Defesa Nacional e Inteligência, é Doutor em Relações Internacionais pela Universidade de Brasília, com tese sobre o controle da atividade de inteligência. Professor e conferencista, atua há mais de vinte anos em Inteligência, com inúmeras publicações no Brasil e no exterior a respeito, com destaque para os livros Políticos e Espiões: o controle da atividade de inteligência (Niterói: Impetus, 2ª edição, 2019) e Atividade de Inteligência e Legislação Correlata (Niterói: Impetus, 6ª edição, 2018). É vice-presidente da Associação Internacional para Estudos de Segurança e Inteligência (INASIS). A opiniões neste artigo são pessoais e não representam necessariamente a percepção de quaisquer organizações às quais o autor esteja vinculado. Texto publicado originalmente em http://www.frumentarius.com.