Ao chegar hoje ao shopping para minha habitual programação das tardes de sábado, deparei-me com um cenário triste e uma situação inesperada: uma parede de madeira dividia a Livraria Cultura do Shopping Iguatemi, restringindo seu espaço a apenas um terço do original… No tapume bege, a mensagem de que estavam em obras e que ali seriam as futuras instalações de uma papelaria conhecida aqui de Brasília.
Sensação das piores para todos os apaixonados por livros e que tinham na Cultura um oásis para matar a sede de conhecimento nos finais de semana, encontrar os amigos entre as prateleiras e tomar um chocolate no Café ali dentro! Sentimento de perda, não só de espaço, mas uma parcela de momentos inesquecíveis… Frustração ao ver os livros, em menor quantidade, distribuídos quase que aleatoriamente em estantes que sobravam, e para as quais os (poucos) vendedores acorriam com um ar de desencanto, meio que tentando reposicionar títulos que não sabiam se realmente deveriam estar ali. “Desencanto” talvez seja a melhor definição daquele cenário.
Olho para o lado e vejo minha filha com lágrima nos olhos… Ela cresceu indo àquela livraria, brincava na seção infantil, entretia-se com as apresentações culturais, passava horas envolvida com as histórias de quem sabia fazer sonhar… Ali certamente seu gosto pela leitura era ninado em um ambiente saudável e acolhedor. Ali ela participou de lançamentos de obras infantis, infanto-juvenis e até de autoria de seu pai, com lembranças, repito, que jamais serão apagadas. E agora, aquela menina vislumbrava o começo do fim, e seu espaço sendo diminuído, perguntando-se se seria a modernidade que estaria a nos afastar daquele companheiro de toda a vida, e que se popularizou a partir do momento em que Gutemberg nos trouxe a imprensa…
Talvez quem viva com livros entenda esse sentimento de frustração. No Brasil, as grandes livrarias entraram em crise nos últimos anos, com a FNAC fechando e sendo comprada pela Cultura, esta, por sua vez, em recuperação judicial, e em grave risco de bancarrota, assim como acontece com a Saraiva, com diversas unidades tendo que cerrar suas portas, e grupos de livreiros tradicionais deixando dívidas de milhões para as editoras e demais credores. Isso tudo levaria muita gente a afirmar que, “definitivamente, o livro é um péssimo negócio, sobretudo no Brasil”.
Não sou conhecedor do mercado editorial, muito menos do negócio dos livreiros. Na condição de autor, o elo mais fraco nisso tudo depois do próprio leitor, percebi, porém, situações que contribuíram para nos colocar na pior crise que o setor que edita e comercializa livros tem enfrentado em toda sua história. De forma alguma farei qualquer análise técnica do problema, mas apresentarei algumas reflexões fruto da observação de quem escreve, adquire constantemente, e é apaixonado por livros.
Um primeiro ponto a ser considerado no “negócio” dos livros é como são distribuídos os valores pagos quando você compra uma obra. Do preço de capa, entre 5% e 10% vão para o autor (normalmente, não se passa disso), que terá sorte se as editoras realmente pagarem esses direitos autorais (do meu primeiro livro, Tribunal de Nuremberg, recebi um imenso calote da Editora Renovar, que nunca me pagou os direitos referentes à segunda edição, em um total descaso com quem gerou a obra – essa falta de profissionalismo para com os autores talvez tenha contribuído para a falência daquela editora). Assim, o autor dificilmente receberá mais de 10% do preço de capa (definitivamente, são raríssimos os autores que vivem de suas publicações no País).
Se entre 5% e 10% é destinado ao autor, a editora fica com cerca de 40 a 50% do preço de capa, parcela para cobrir os custos de produção, distribuição e impostos e, claro, o lucro do editor – é disso que ele e a empresa vivem. Assim, quem se dedica ao negócio de publicar livros e, normalmente, arca com os riscos do negócio (há editoras que dividem com o autor esses riscos da publicação), terá entre 40 e 50% do preço de capa. E os outros 40 a 50%? Bom, esses vão para os livreiros.
Sim, entre 40 e 50% do preço de capa de um livro fica para a livraria – com isso ela paga suas despesas e tem seu lucro. E é com essa margem que ela pode lidar para, por exemplo, fazer promoções e dar descontos. Aqui cabe um detalhe importante: geralmente, os livros são vendidos pelas livrarias por consignação, ou seja, as livrarias recebem as obras e só “pagam” às editoras depois que venderem. Quando, em ocasiões mais raras, os livreiros pagam antecipadamente parte dos títulos que adquirem, fazem-no com cláusulas contratuais que lhes permitam devolver os livros não vendidos depois de um certo tempo, e receber o dinheiro de volta – em espécie, ou em forma de crédito junto à editora. E assim, em linhas gerais, funciona a distribuição dos valores arrecadados com a comercialização de livros, abocanhando as livrarias uma parcela significativa deles!
Ainda que os editores reclamem e digam que os vendedores de livros ficam com a maior parte do lucro, sempre foi assim… E, nessa relação muitas vezes complicada com as editoras, pequenas livrarias viraram grandes redes, fizeram investimentos, engoliram livreiros menores, fizeram contratos leoninos com as editoras (que, muitas vezes, reproduziam esse comportamento com os autores), começaram a “diversificar o negócio”, perderam a mão, não abriam mão dos lucros significativos, e começaram a levar tombos, deixar de vender, deixar de pagar os fornecedores, ver suas dívidas crescerem, fechar as portas e tomar consciência de que a crise era uma evidência de que o livro era “um péssimo negócio”!
Nos últimos anos, as perdas foram significativas para muitos que tinham livros como negócio. Entre 2012 e 2019, o número de livrarias no Brasil (que sempre foi reduzido) teria despencado de cerca de 3.500 para 2.500… Rui Campos, proprietário da Livraria da Travessa, teceu algumas interessantes considerações sobre a situação do mercado editorial do Brasil nos últimos anos, em entrevista publicada pela Deutsche Welle, em 31/01/2019:
“Ao mergulharmos na crise sem precedentes que o Brasil enfrentou nos últimos anos, as nossas principais redes revelaram as estratégias equivocadas em que se envolveram. Encontrando financiamento fácil característico dos anos Dilma, usaram e abusaram de busca desenfreada por aumento de faturamento visando ‘abertura de capital’, sem nenhuma preocupação com margens e resultados. (…) Conduziram uma abertura acelerada de megalojas, enxugamento de quadros com a demissão dos livreiros históricos e um forte investimento em livros eletrônicos e em e-readers para leitura de e-books que não performaram nem perto do que se apregoava. Sendo as livrarias criadoras de demanda, nunca essa demanda será totalmente atendida por outras livrarias. Muito irá se perder com consequências ruins para nossas editoras e para o mercado livreiro”. ( – Veja mais em https://noticias.uol.com.br/ultimas-noticias/deutschewelle/2019/01/31/as-livrarias-estao-desaparecendo-do-brasil.htm)
“Tudo bem”, você vai dizer, “sempre lemos pouco em relação ao restante do continente, vivemos o período de maior crise econômica de nossa história, e os livros tradicionais estariam perdendo espaço para novas opções tecnológicas como e-books e audiobooks” (usei o gerúndio e escrevo os nomes em inglês porque o pessoal acha mais chique e modernoso usar a língua e o estilo dos gringos, mesmo que os autores sejam Machado de Assis – que nunca leu um e-book – ou Eça de Queiroz – o qual, consta, detestava audiobooks). Só que a verdade não é bem essa…
Pesquisas assinalam que o número de leitores tem aumentado, bem como a venda de livros – sempre que se tem uma bienal esse fato é ressaltado, não? E enquanto e Saraiva e Cultura quase colapsaram, redes como a Martins Fontes, a Leitura (tenho minhas reservas com relação à Leitura) e a Livraria da Travessa cresceram e ocupam mais espaço. Reproduzo aqui um trecho de matéria de O Estado de São Paulo, de 27/12/2018, que trata dessa situação:
Um cenário desolador, que coloca em xeque o modelo de negócio e faz pensar em alternativas para o futuro, mas que tem boas notícias também. A Martins Fontes Paulista, focada em livro, registrou até a véspera do Natal crescimento de 56% no faturamento em relação ao mesmo período de 2017. Alexandre Martins Fontes, que sempre teve a Cultura do Conjunto Nacional como modelo, diz que “uma livraria física deve oferecer tudo aquilo que uma livraria virtual não oferece: atendimento personalizado, ambiente aconchegante, eventos culturais, café, etc.”. A Travessa, do Rio, chega a SP e a Lisboa em 2019. E a Leitura se espalha pelo interior do Brasil, aeroportos e rodoviárias. (Para a matéria completa, vide: https://cultura.estadao.com.br/noticias/literatura,a-crise-do-mercado-editorial-brasileiro-em-cinco-perguntas,70002658690)
Voltamos, assim, ao ponto inicial de minhas elucubrações: como a Saraiva e, sobretudo, a Cultura, chegaram a essa situação? Usando as palavras do passageiro perdido, dirigidas o motorista do ônibus, “a que ponto chegamos” para eu entrar na Livraria que se tornou um dos pontos de referência na Capital do Brasil e ver aquele cenário apocalíptico (ao menos para quem ama livros)?
Sinceramente, essas duas grandes corporações editoriais entraram em colapso quando mudaram a sua percepção do comércio dos livros e contrataram “especialistas” para promover uma “reengenharia” em seu “negócio”. Sim, tanto Saraiva quanto Cultura se afastaram das origens, arranjaram “CEOs” e “businessmen” para substituir “donos”, “gerentes” e “diretores” e começaram a conduzir-se como se livros, redes de fast-food e bancos fossem o mesmo tipo de negócio, ou negócios a serem tocados do mesmo jeito: estratégias de vanguarda aplicadas no setor financeiro poderiam ser aplicadas para as livrarias? Por que não? E leitores nada mais seriam que clientes, com “meu negócio preocupado em racionalizar os gastos, aumentar a eficiência, reduzir a despesa e aumentar os lucros?” Claro! “Por que não vender computadores, TVs e DVDs aproveitando o espaço das livrarias?” E “para que eu preciso de vendedores que conheçam e gostem de livros se posso pagar menos para alguém que saiba operar um sistema e verificar no computador que o livro de Joanisval e Marcus Reis, Terrorismo: conhecimento e combate está na seção de Literatura, subseção Terror, ou está esgotado – já que no meu sistema diz que não consta na loja?” Esse mesmo vendedor, diga-se de passagem, vai procurar O Banquete, de Platão, na seção de Culinária – e pode até ser que encontre!
Saraiva e Cultura deixaram de ser livrarias, de contratar livreiros, e passaram a tocar o “negócio de livros”, mais um “negócio”… Esqueceram que o “consumidor” de um livro é, na verdade, um “leitor”. Parecem não saber que quem vai em busca de um livro na livraria está à procura de uma experiência…
Quem lê exerce uma atividade prazerosa desde o momento que chega à livraria (não à “megastore”) para passear pelas estantes, correr os olhos a brilhar sobre as prateleiras, pegar um, dois, três livros, sentar em uma poltrona para passar a outro estado de consciência enquanto viaja nas reflexões de outra pessoa, reflexões essas que se tornam suas a cada página “degustada”. Quem vai a uma livraria quer deixar de lado as preocupações quotidianas, quer fugir, ainda que por alguns minutos, para um universo em que possa, por si só, descobrir algo novo, viver outras realidades. Apenas quem ama livros sabe o prazer que um texto bem escrito proporciona e a importância de uma boa livraria para a saúde mental do ser humano.
Sim, faz toda a diferença chegar a uma livraria como era a Livraria Cultura do Shopping Iguatemi de Brasília! Dezenas de estantes, livros dos mais distintos gêneros, cheiro de livro novo, poltronas para se recostar e apreciar um bom título (que acabaria sendo adquirido), mas não sem antes tirar um cochilo de poucos segundos, porém de imenso potencial revitalizador. Um café no “Café” completa o passeio à livraria que, se há desconto, ainda que simbólico para aqueles que são “fiéis” (sim, porque senão o leitor pode viver tudo isso e buscar a obra mais em conta pela internet – desconto é algo psicológico!), certamente verá o leitor indo embora com a sacolinha e ao menos um livro nela – para voltar na outra semana em busca de mais!
O livro foi, indubitavelmente, uma das maiores criações da humanidade. Portanto, o livro e a humanidade são indissociáveis. Muito difícil vender livros sem gostar de livros. Daí a importância do “livreiro”. As grandes redes sacrificaram seus livreiros. E ao matarem os livreiros que ali estavam, selaram sua própria sorte. A única chance, portanto, é sair do “negócio dos livros” e voltar ao “ofício dos livreiros”.
Para concluir com uma centelha de esperança, se a frustração foi imensa hoje na Cultura, a alegria foi grande diante de um episódio que aconteceu comigo no início da semana: ao entrar na Saraiva do Brasília Shopping, aqui na minha cidade, percebi que a loja estava diferente, com um ambiente mais agradável. Alguma coisa parecia estar mudando ali. Acabei encontrando três livros e fui ao caixa para levá-los (sim, não os comprei pela internet, pois tenho desconto na Saraiva). Qual não foi minha surpresa quando me deparei, trabalhando naquela loja, com o Chiquinho, amigo de longa data, e um dos últimos livreiros aqui do Distrito Federal! Chiquinho dedicou toda sua vida aos livros, é um Livreiro com “L” maiúsculo, alguém que diz com muito orgulho que “saiu da roça para trabalhar na livraria e nunca mais pensou em outra profissão!”. Estava explicado o porquê daquele ambiente diferente, renovado. A livraria agora dispunha de alguém que ama livros, ama falar de livros, ama ser livreiro!
Espero, verdadeiramente, que a Saraiva continue a recuperar-se (e que traga mais Chiquinhos para seus quadros), e que a Cultura retome seu rumo e volte às origens. E as origens da Livraria Cultura dão, por si, uma boa história, uma boa história de dificuldades, desafios e superação, uma história de imigrantes judeus que amavam livros e que viram no comércio dos livros sua profissão.
Livro só será um péssimo negócio se for só “um negócio”. Cada livro é uma peça única, feita por alguém para outra pessoa. Cada livro é uma expressão de nossa cultura, a materialização de nosso pensamento e, sobretudo, em cada livro está uma parcela da humanidade. E, a esse respeito, o encontro com Chiquinho na Saraiva e a experiência nefasta na Cultura, ambas na mesma semana, fizeram-me lembrar as palavras de Charles Chaplin: “Homens, não sois máquina! Homens é o que sois!”.
Seguem os links para as matérias citadas, com informações sobre o mercado editorial brasileiro: