No último sábado, 27/12, foram lembrados os 150 anos do início do maior conflito já ocorrido na América do Sul: a guerra entre as forças que constituíram a Tríplice Aliança (formada por Argentina, Brasil e Uruguai) e as tropas do Paraguai, comandado pelo ditador Francisco Solano López. O confronto, que ceifou 300 mil vidas de ambos os lados, durou quase seis anos, e marcou profundamente a história do continente.
Muito pouco se conhece sobre a Guerra da Tríplice Aliança (ou Guerra do Paraguai). De fato, o que impera são percepções deturpadas, confusas, errôneas mesmo, sobre aqueles acontecimentos. Lembro que, certa feita, estava na sala de espera de um aeroporto aqui no Brasil e acabei escutando a conversa de algumas pessoas, entre as quais um que se dizia “professor de História”… o tema era “a Guerra do Paraguai”.
“Pois é!”, dizia o sujeito para os outros três a ele atentos (quatro, porque eu também comecei a prestar atenção), “o Paraguai foi atacado pelo Brasil e seus aliados, incitados pela Inglaterra… Afinal, os país era uma grande nação desenvolvida da América do Sul que ameaçava os interesses dos ingleses”… E a bobageira continuava: “Nós [brasileiros] acabamos com o Paraguai… quase todos os homens foram mortos na guerra… e o país nunca mais se recuperou daquela agressão!”
Quando ia interromper o grupo para narrar os fatos como ocorreram, começaram a chamar para o vôo. Tive que deixá-los com essa visão errada do que aconteceu naqueles idos da década de 1860. Isso me incomoda profundamente, sobretudo porque a percepção equivocada do conflito foi uma construção ideológica reforçada por um pseudo-historiador brasileiro que, no auge de sua cretinice, colocou o Brasil como o grande vilão do confronto (para atingir o então governo do Brasil nos anos 1970 e ofender nossas Forças Armadas). Por ocasião desses 150 anos do início daquela “Maldita Guerra”, vamos a alguns esclarecimentos sobre o que realmente ocorreu.
Em primeiro lugar, o Paraguai estava muito longe de ser uma grande nação desenvolvida da América do Sul. De fato, era um país governado a mão-de-ferro por um ditador que se mostrou sanguinário e louco. Não há que se falar tampouco em uma grande potência industrializada. Tinha-se ali uma combinação pouco usual de uma economia escravista, sob forte influência estatal, com alguns esforços de modernização. E para essa “modernização”, Solano López via na Bacia do Prata um “espaço vital” para o Paraguai, mesmo porque necessitava de livre navegação ali para realizar o comércio com o mundo. Enfim, López precisava aumentar a influência paraguaia na região. Só que as pretensões do ditador entrariam em conflito com os interesses da Argentina, do Uruguai… e do Império do Brasil.
Em segundo lugar, deve ficar claro que a guerra não foi instigada pela Grã-Bretanha, “que via o Paraguai como ameaça”. Aspecto relevante sobre o assunto: quando se iniciou o conflito, a Grã-Bretanha estava de relações rompidas com o Brasil (em razão da Questão Christie) – não havia sequer canais institucionais para que o governo de Londres influísse sobre o Brasil. Além, disso, uma guerra seria bastante prejudicial aos interesses britânicos na região, uma vez que havia investimentos de súditos de Sua Majestade a Rainha Victoria em todos os países do Prata, tanto Aliados quanto o próprio Paraguai. Por último, o Império Britânico, no auge de seu poder, dominando 25% da superfície do globo, tinha mais com que se preocupar do que com os arroubos megalomaníacos de Solano López.
Terceira observação importante: o Brasil não estava preparado para a Guerra, nem tinha planos de agressão contra o Paraguai. Quem começou o conflito foi o Paraguai, que tinha interesse em parte do nosso território, queria aumentar sua influência sobre o Uruguai (o que significava entrar em choque com a Argentina) e agrediu diretamente o Brasil. Em 11 de novembro de 1854, López ordenou o apresamento do vapor brasileiro Marquês de Olinda, que subia o Rio Paraguai rumo ao Mato Grosso, levando o recém-nomeado Presidente da Província, que seria preso e morreria no cárcere paraguaio. Esse ato pérfido foi seguido da invasão do território brasileiro, em 27 de dezembro de 1864, com o ataque, por forças de López, do Forte de Coimbra, com forças trinta vezes superiores à guarnição imperial de 155 homens, que resistiram por três dias. Nosso território fora atacado e tropas paraguaias entravam em solo brasileiro.
O Império do Brasil, portanto, apenas respondeu à injusta agressão. Reproduzo o texto do maior conhecedor daquele conflito, o colega e professor da Universidade de Brasília, Francisco Doratioto:
“A Guerra do Paraguai foi fruto das contradições platinas, tendo como razão última a consolidação dos Estados nacionais na região. Essas contradições se cristalizaram em torno da Guerra Civil uruguaia, iniciada com o apoio do governo argentino aos sublevados, na qual o Brasil interveio e o Paraguai também. Contudo, isso não significa que o conflito fosse a única saída para o difícil quadro regional. A guerra era umas das opções possíveis, que acabou por se concretizar, uma vez que interessava a todos os Estados envolvidos. Seus governantes, tendo por bases informações parciais ou falsas do contexto platino e do inimigo em potencial, anteviram um conflito rápido, no qual seus objetivos seriam alcançados com o menor custo possível. Aqui não há ‘bandidos’ ou ‘mocinhos’, como quer o revisionismo infantil, mas sim interesses. A guerra era vista por diferentes ópticas: para Solano López era a oportunidade de colocar seu país como potência regional e ter acesso ao mar pelo porto de Montevidéu, graças a aliança com os blancos uruguaios e os federalistas argentinos, representados por Urquiza; para Bartolomeu Mitre era a forma de consolidar o Estado centralizado argentino, eliminando os apoios externos aos federalistas, proporcionando pelos blancos e por Solano López; para os blancos, o apoio militar paraguaio contra argentinos e brasileiros viabilizaria impedir que seus dois vizinhos continuassem a intervir no Uruguai; para o Império, a guerra contra o Paraguai não era esperada, nem desejada, mas, iniciada, pensou-se que a vitória brasileira seria rápida e poria fim ao litígio fronteiriço entre os dois países e às ameaças à livre navegação, e permitira depor Solano López. (…) Dos erros de análise dos homens de Estado envolvidos nesses acontecimentos, o que maior consequência teve foi o de Solano López, pois seu país viu-se arrasado materialmente no final da guerra. E, recorde-se, foi ele o agressor, ao iniciar a guerra contra o Brasil e, em seguida, com a Argentina.” (DORATIOTO, Francisco, Maldita Guerra, São Paulo: Companhia das Letras, 2002, pp. 95 e 96)
Mais algumas observações podem ser feitas sobre aquela guerra: ao longo de cinco anos, as tropas da Tríplice Aliança lutaram contra as hordas do ditador paraguaio (essas também muito valentes, mas sem grandes comandantes), com uma série de episódios de valentia de ambos os lados, que mereciam mais atenção de nossos estudantes e dos historiadores em geral. Destaco que grandes brasileiros fizeram história nos campos de batalha da Guerra do Paraguai: Luís Alves de Lima e Silva, o Duque de Caxias (1803-1880), Joaquim Marques Lisboa (Marquês de Tamandaré), o Almirante Tamandaré (1807-1897), patronos do Exército Brasileiro e da Marinha do Brasil, respectivamente, e, ainda, Manuel Luís Osório, o Marquês de Herval (1808-1879), Francisco Manuel Barroso da Silva (Barão do Amazonas), o Almirante Barroso (1804-1882), Antônio de Sampaio (1810-1866), Émile Louis Mallet, o Barão de Itapevi (1801-1886), apenas para citar alguns desses heróis. O próprio Imperador Dom Pedro II (1825-1891), Comandante-em-Chefe das Forças Armadas do Império do Brasil, foi até o front, com o objetivo de animar seus soldados. Note-se que Sua Majestade Imperial chegou ameaçar abdicar do Trono, caso a Assembléia Geral não autorizasse sua ida ao campo de batalha.
Após anos de conflito, López foi finalmente derrotado. Seu país estava arrasado, mas sobretudo por sua insanidade na conduta da guerra e por sua crueldade para com seu próprio povo. Mesmo com a derrota paraguaia, Dom Pedro II fez questão de manter a integridade territorial do país vizinho – ato de nobreza pouco lembrado e incomum na política das nações à época. Foi, repita-se, o maior conflito ao sul do Equador, após o qual o Império do Brasil conquistou a hegemonia na América do Sul. Profundas mudanças ocorreriam na economia, sociedade e política de todos os Estados envolvidos naquela guerra.
Esses são apenas alguns aspectos da guerra de 1864-1870. Quando em vez, trarei mais informações a respeito aqui em Frumentarius. Que a memória daqueles que lutaram e morreram naquele confronto não seja jamais esquecida!
Segue artigo do Correio do Estado (de Mato Grosso do Sul) sobre o ataque ao Forte de Coimbra.