Big Brother e democracia

Pode o Estado acessar dados e comunicações pessoais do cidadão para protegê-lo? Direitos fundamentais podem ser mitigados sob o imperativo da segurança? Escrevi sobre isso hoje na Folha de São Paulo.

Para o artigo na Folha, clique aqui.

E, a seguir uma versão um pouco mais completa do artigo…

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BIG BROTHER E DEMOCRACIA

Joanisval Gonçalves

Quando, em 1949, George Orwell escreveu o romance “1984”, tratou de uma sociedade futurística, na qual o Estado controlava os cidadãos de maneira absoluta, vigiando-os no mais íntimo de sua privacidade, conhecendo suas ações mais particulares e determinando sua maneira de pensar. A obra de Orwell, que se tornou um clássico, retratava com maestria um Estado onipresente, controlador e repressor, representado pela figura do Big Brother, o Grande Irmão, que tudo via e tudo sabia. Entretanto, “1984” tratava de um regime totalitário. No século 21, porém, o Grande Irmão chegou às democracias.

Nas últimas semanas, com a revelação de que o governo dos Estados Unidos estaria reunindo dados a partir de interceptações telefônicas e acessos irregulares a mensagens e contas na internet de milhões de pessoas, o tema do Estado controlador do cidadão voltou à tona. Pode o Estado, sob o imperativo da segurança, violar a intimidade do indivíduo? E o direito de o cidadão ter suas informações pessoais e comunicações preservadas é absoluto? Essa é uma discussão complexa, sobretudo por vivermos uma época em que o mundo digital está cada vez mais presente e a segurança da sociedade se vê diante de ameaças como o terrorismo. Na era da informação e da insegurança, teremos que nos submeter ao Big Brother para nos proteger?

Nenhum direito individual é absoluto. A vida em sociedade requer a mitigação de alguns direitos individuais diante de certas necessidades coletivas, como a segurança. Assim, se as pessoas estiverem sob uma ameaça de significativa gravidade, o Estado pode mesmo violar a privacidade para protegê-las, sob a justificativa do imperativo da segurança. Esse é o argumento do governo Obama para acessar os dados do cidadão. E encontra acolhida em mais da metade dos estadunidenses, segundo pesquisas recentes: 56% dos entrevistados aprovam o monitoramento das comunicações telefônicas, enquanto 41% consideram a prática inaceitável.

Portanto, ao menos nos Estados Unidos, a terra da liberdade individual e da democracia, o assunto ainda suscitará muita discussão. E ali parece razoável que o Estado monitore seus cidadãos para protegê-los. Sob a perspectiva do povo norte-americano, em nome do qual trabalha seu governo, a garantia da segurança coletiva e a proteção aos valores democráticos e aos princípios fundadores de sua nação seriam justificativas plausíveis para limitar liberdades individuais.

É certo que direitos fundamentais podem se ver limitados por razões de Estado, em especial quando a sociedade é alvo de ações contrárias à ordem democrática estabelecida. Porém, para que o Estado limite direitos dos cidadãos, é fundamental que haja critérios que impeçam que agentes públicos cometam arbitrariedades. O monitoramento das contas e comunicações dos indivíduos, se ocorrer, deve ser feito sob rígidos mecanismos legais e institucionais de controle. Caso contrário, abusos serão cometidos pelos órgãos de segurança e inteligência, uma vez que lidam com informação e poder.

De fato, algo que diferencia os regimes democráticos dos autoritários é que, no primeiro caso, os serviços secretos protegem o cidadão e estão sob o mais rígido controle do Judiciário e do Legislativo. Também a sociedade civil organizada, com destaque para o papel da imprensa, deve ter essa prerrogativa.

Se, no país de Obama, é possível e até aceitável de acordo com suas leis, que o Estado monitore os cidadãos, no Brasil essa prática encontra limites claros. A própria Constituição só permite interceptação telefônica para fins de investigação criminal ou instrução processual e apenas com autorização judicial. Entretanto, muito difícil será impedir que autoridades estadunidenses monitorem as comunicações de brasileiros. Afinal, quem controlará as ações de política externa dos Estados Unidos? Que força terão os governos de outros países para impedir ou neutralizar iniciativas tecnológicas intrusivas da Superpotência?

Seria ingênuo imaginar que se houver uma determinação de um governo como o dos Estados Unidos, respaldada em leis e em autorização judicial ou legislativa, as informações pessoais de qualquer ser humano pelo globo ficarão a salvo do monitoramento daquele país ou de outros. Na era do conhecimento e da realidade virtual, as pessoas devem estar conscientes de que podem ser objeto de vigilância, legal ou não. O Big Brother está lá, ainda que não gostemos dele. Esse pode ser o preço a pagar se quisermos viver nesse admirável mundo novo…

Uma resposta em “Big Brother e democracia

  1. Concordo com a vigilância do Estado quando existe uma ameaça ou necessidade de intervenção da segurança nacional. Conforme mencionado, o rígido controle para que não existam abusos é indispensável, visto que trabalhamos com seres humanos e as mentes de cada um, são os seus próprios segredos, ou seja, não há como prever uma atitude pessoal.
    Essa intervenção deve ter como foco uma ameaça específica. O que quero dizer é que uma autorização concedida para tal ação deve estar baseada nos relatórios de inteligência e investigação dos órgãos competentes do governo. Já o monitoramente constante e ininterrupto, particularmente eu passo a discordar devido a liberdade pessoal. Infringir a liberdade pessoal de cada um por um erro de gestão anterior é algo equivocado.
    Basicamente, ao meu ver, eu colocaria da seguinte forma: Verificação da ameaça pelos relatórios de inteligência – investigação pela segurança nacional acerca da ameaça – confirmada a necessidade de intervenção pesada devido ao grau de risco, é liberado o monitoramento constante até o encerramento do caso.

    Muito bom artigo. Discussão muito complexa.
    Obrigado

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