Aqueles que nos formamos nas últimas décadas acostumamo-nos com a imagem de Muamar Kadafi como homem forte da Líbia, líder autoproclamado da causa dos países em desenvolvimento e de um nacionalismo árabe e anticlerical, admirado por muitos, odiado por tantos outros… Pode-se dizer muito de Kadafi, menos que ele era um sujeito comum. De suas roupas espalhafatosas a seus discursos ardorosos contra os Estados Unidos, passando pelo apoio ao terrorismo e a rivalidade com a Al Qaeda, o homem que aos 27 anos chegou ao poder de forma extraordinária (e igualmente conseguiu mantê-lo por quatro décadas) certamente deixará sua marca na História do final do século XX e do início do terceiro milênio.
É estranho ver Kadafi morto. É estranho ver a Líbia sem Kadafi. É estranho ver o mundo árabe sem um de seus líderes mais conhecidos e polêmicos, um verdadeiro “pop star do terceiromundismo”. É estranho imaginar o mundo sem a figura do líbio com suas vestes de beduíno ou seu uniforme com fotos pregadas, com sua bela guarda pessoal composta só de mulheres, sem sua tenda armada defronte as ruínas do palácio presidencial, sem seu semblante à frente da bandeira verde e do nome “Líbia” nas conferências internacionais.
Muito sentirão falta dele. Eu sentirei falta dele, o Caubi da Líbia, o crossdressing de Trípoli, o inspirador da moda brega-megalômana entre os ditadores… Certamente, o mundo sem Kadafi ficará mais sem graça…
Interessante como acabou Kadafi. Resistiu por décadas às Potências ocidentais. Sobreviveu ao bombardeio estadunidense de 1986. Pereceu nas mãos do próprio povo.
Há alguns meses, comentando o Levante na Líbia, eu disse aqui neste site que Kadafi não era como Saddam Hussein. Disse que ele resistiria até o final e que morreria lutando… Foi o que aconteceu.
Pereceu nas mãos do próprio povo. No século XXI, talvez este seja o destino da maioria dos ditadores. O que aconteceu a Kadafi seria impensável há alguns anos, assim como o que acontece hoje no mundo islâmico. Morreu como deveria morrer.
Que o exemplo de Kadafi sirva de alerta para alguns outros líderes remanescentes de uma época em que os regimes autoritários eram incontestes, e o argumento de que se agia por uma causa maior e em nome do povo era suficiente para perpetuar ditadores no poder.
Tudo indica que os anos que se seguem não serão campo fértil para a manutenção de ditaduras, muitas plantadas há décadas, em uma época em que ser ditador em país pobre era até fashion. Logo essas ditaduras cairão, pois as idéias que lhes deram origem já terão sido esquecidas pelas novas gerações… E esses ditadores cairão por suas próprias mãos, pelas mãos do progresso e do anseio democrático, ou pelas mãos de seu próprio povo.
Depois do que houve com Muamar, os dinossauros que sobreviveram à onda autoritária do século XX deveriam colocar as barbas de molho…
Bastidores
Cauby Peixoto
Chorei, chorei, até ficar com dó de mim
E me tranquei no camarim
Tomei um calmante
Um excitante e um bocado de gim
Amaldiçoei o dia em que te conheci
Com muitos brilhos me vesti
Depois me pintei, me pintei, me pintei, me pintei
Cantei, cantei
Como é cruel cantar assim
E num instante de ilusão,
Te vi pelo salão
A caçoar de mim
Não me troquei,
Voltei correndo ao nosso lar,
Voltei pra me certificar
Que tu nunca mais vais voltar, vais voltar, vais voltar
Cantei, cantei
Nem sei como eu cantava assim
Só sei que todo cabaré
Me aplaudiu de pé quando cheguei ao fim.
Mas não bisei,
Voltei correndo ao nosso lar,
Voltei pra me certificar
Que tu nunca mais vais voltar, vais voltar, vais voltar
Cantei, cantei
Jamais cantei tão lindo assim
E os homens lá pedindo bis
Bebâdos e febris à se rasgar por mim
Chorei, chorei até ficar com dó de mim.
Joanisval, meu caro, a letra é infamemente esquerdista, mas esse trecho é impagável:
“Amaldiçoei o dia em que te conheci
Com muitos brilhos me vesti
Depois me pintei, me pintei, me pintei, me pintei
Cantei, cantei
Como é cruel cantar assim
E num instante de ilusão,
Te vi pelo salão
A caçoar de mim”
Fica o desejo de democracia real no Oriente. Se é que ela existe de verdade em algum lugar.