Todos nós sabemos que só existe uma única certeza absoluta na vida… Porém, nunca é fácil lidar com ela, sobretudo quando ocorre com entes queridos. Consegui lidar com isso relativamente bem ontem e hoje, mas chega uma hora do dia, de fato depois do crepúsculo, quando as lembranças vêm à mente, e o coração se enche de emoção e de saudade…
Estou de luto. Ontem, às 11:35 da manhã de 25 de maio do Ano do Senhor de 2016, meu querido tio, Padre Vicente, nos deixou. E é indescritível o vazio que fica quando alguém como ele vai aos braços do Pai.
Vicente de Paulo Britto era seu nome. Filho mais velho de uma família de oito irmãos, desde muito cedo Vicente sabia o que queria ser na vida: sacerdote! Já nas brincadeiras de criança, buscava logo algo que lhe servisse de altar, juntava as outras crianças e logo começava a celebrar o que seria uma missa campal, sob as mangueiras da casa de vovô. A família, que não era nada abastada, conseguiu reunir recursos para que seu primogênito fosse para o seminário. Assim, no dia 13 de dezembro de 1953, Vicente foi ordenado padre. Sua primeira missa seria na Igreja Matriz de Caxias (MA), onde fora batizado, onde tanto celebrara, e onde é velado e ocorrerá a missa de corpo presente, a última do Padre Vicente, que foi um sacerdote de Cristo, verdadeiramente, longo de todos os seus 86 anos.
Sobre o homem público, o vigário, haveria muito a dizer. Afinal, o Padre Vicente se tornou um marco na cidade onde foi pároco durante 53 (sim, cinquenta e três) anos: a pequena, mas valorosa, Passagem Franca (MA). Ali, no município que hoje conta com cerca de 17.000 habitantes, Vicente chegou ainda jovem (tinha seus trinta anos), e durante cinco décadas batizou, celebrou eucaristias e casamentos, pregou o Evangelho, aconselhou muita gente, catequizou aquele povo. Conquistou Passagem Franca pelo exemplo, pelo trabalho incansável em prol da comunidade, em especial dos mais carentes, pela inteligência e pelo conhecimento (que tão bem sabia compartilhar sem arrogância), e, acima de tudo, pelo Amor, Amor a Cristo e a seu rebanho. Quando, em 1 de novembro de 2013, Dia de Todos os Santos, celebrou sua missa de despedida na Paróquia de São Sebastião (onde tanto servira como pároco), ali estavam reunidas mais de mil pessoas, de autoridades a homens simples, professores, advogados, médicos, agricultores, caboclos e doutores, gente do campo e da cidade, católicos e fiéis de outras crenças, todos para prestar tributo ao amado Padre. Vicente escreveu, com trabalho e amor, a História de Passagem Franca e de seu povo. Será sempre por eles lembrado.
Deixando de lado o homem público, a emoção é forte ao lembrar do querido tio. Padrinho, como o chamávamos, era uma referência para todos nós da grande família Britto. Para mim, não tenho palavras para descrever o quanto Padrinho significava. Foi ele que celebrou o casamento de meus pais, fui por ele batizado, dele recebi minha primeira Eucaristia… mais que tudo isso, com ele me identificava e via exemplo de retidão e fortaleza, de alegria e responsabilidade, de amizade, dedicação, sabedoria, modéstia, honradez, simplicidade e amor incondicional. Lembro-me que com ele me correspondia ainda menino… Sempre ansioso para receber seu retorno quando escrevia minhas cartinhas endereçadas à Casa Paroquial de Passagem Franca, expondo minhas reflexões de menino sobre as coisas da vida, sobre a fé e a doutrina da Igreja, sobre a filosofia dos homens, sobre as grandes e pequenas conquistas. E ele as respondia sempre com carinho e atenção de pai…
Padrinho nunca foi um homem comum. Era um líder nato, um orador fenomenal. Sempre me espelhei nele ao falar. Ninguém se comparava ao Padre Vicente quando, com um microfone na mão ou simplesmente projetando sua voz forte e firme, começava a falar às multidões. E se estivesse a pregar a Palavra então, impossível não permanecer atento e hipnotizado por seu discurso. E como ele gostava de pregar o Evangelho! Não há dúvida de que nascera para isso!
Uma das primeiras memórias que tenho do Tio Padre era um couro de onça que tinha recebido dele de presente quando era bem pequeno. Isso mesmo! Durante alguns anos, Padrinho criou uma onça parda no quintal de casa… Dizem que só quem conseguia conter o bicho era um enorme cão que Padrinho criava… e o próprio Padre Vicente! O desfecho da história, contava-se lá em casa, foi quando ele teve que com muita tristeza de sacrificar o animal, que nunca havia perdido a selvageria. E para mim foi enviado o coro da bicha… brinquei muito sobre a pele da onça quando criança.
Outra lembrança de Padrinho: era de um homem do povo. Gostava de sair a cavalo pela caatinga, à frente de procissões pelo interior ou participando das vaquejadas, pegando boi pelo chifre (sim, era dado a esses rompantes!), sempre com uma coragem e alegria de viver que deixaria muitos vaqueiros experientes no chinelo. Tantas são as histórias das aventuras do Padre Vicente –hoje percebo que poderia ser um sacerdote-guerreiro!
Conta-se que, certa feita, logo que saíra do seminário, Vicente foi enviado a uma cidadezinha comandada por uma família matriarcal à qual todos deviam se submeter. O último vigário local havia sido expulso pela velha matriarca e seus filhos. E lá chegava o Padre Vicente! Logo nas primeiras missas, Padrinho deu uma bronca em um dos filhos da matriarca durante a celebração, diante dos olhares incrédulos do povo daquela terra. A velha tomou as dores, e desafiou o padre, dizendo que se ele não fosse embora da cidade, ela e os filhos iriam lhe dar uma surra de chicote. Padre Vicente não titubeou e disse que ia ficar e que no dia seguinte estaria à hora x na praça da matriz como sempre o fazia, pois não seria ela nem qualquer um dali que o faria deixar o lugar: estava marcado o duelo! Na data e hora acordadas lá estava ele, firme, altivo e pronto para o que desse e viesse. Contam que a velha matriarca ficou tão admirada com a coragem do padre que se afeiçoou dele. Vicente permaneceu na cidade e ainda caiu nas graças da família. Lembro que durante muitos anos conservou em casa uma metralhadora (isso!) que ganhara da “coronela”. Esse era meu tio!
Lembranças boas Padrinho nos deixa! Sua enorme biblioteca me fascinava. Padre Vicente era um leitor voraz, falava várias línguas, estava sempre atento a tudo que acontecia pelo mundo e não só em Passagem Franca. Um de seus maiores orgulhos era a escola municipal que leva seu nome. Dos meus tios, era com ele que mais me identificava, com seu amor pelos livros e pelo conhecimento!
Mas o garoto de Brasília que chegou a Passagem Franca nas férias também teve a atenção atraída pelas as espadas, revólveres e garruchas (armas de um tempo em que se podia andar armado) que o Tio Padre tinha na Casa Paroquial! Padrinho costumava carregar consigo quando viajava seu revólver e saberia usá-lo se precisasse. A vida de um sacerdote independente e altivo no interior do Nordeste envolvia riscos, afinal!
Impossível falar de do Padre Vicente sem uma referência expressa a sua alegria de viver, seu espírito brincalhão, sua sempre disponibilidade para uma palavra amiga e de conforto, sua seriedade nos assuntos da religião, sem, porém, faltar com o respeito e a atenção por aqueles que tinham outras crenças, tudo isso vai ficar para sempre guardado em meu coração! Quantas vezes Padre Vicente não teve um Pastor a seu lado nos trabalhos em prol da comunidade de Passagem Franca! Com ele aprendi que D’us é um só, variando apenas o entendimento que os homens têm Dele! Sim, o padre que havia sido ordenado antes do Concílio Vaticano II era também um homem à frente de seu tempo, pois trazia consigo ideias evangelizadoras que seriam imprescindíveis para uma Igreja mais próxima do povo desde a segunda metade do século XX. Que os doutores discutissem a doutrina! Ele pregaria a palavra! Ainda assim, Padre Vicente nunca deixou de responder a minhas dúvidas e questionamentos filosóficos e teológicos! Era ele próprio um doutor que sabia falar a linguagem dos mais humildes!
Um pastor deve, acima de tudo, amar a D’us e cuidar amorosamente de suas ovelhas, deixando para os doutores da lei as discussões filosóficas e doutrinárias sobre a religião, disse-me uma vez o Padre Vicente! E Padrinho foi um pastor verdadeiro, o que se comprova pelo carinho que sua gente tinha por ele. Quando a curiosidade levou este sobrinho a, alguns diriam de forma petulante e indiscreta, perguntar ao Tio por que ele nunca aceitara se tornar bispo (e talvez chegasse a cardeal), a resposta veio serena e amorosa: “Ah, porque nasci para ser padre, gosto mesmo é de ficar com meu povo! Um pastor tem que estar perto do seu rebanho!”.
Ah, Padrinho! Que falta o senhor nos faz! Mas sua hora havia chegado nesta véspera de Corpus Cristi! O senhor demonstrou fortaleza e tranquilidade na última batalha de sua vida: foram quatro anos lutando contra um câncer de próstata e que finalmente terminaram com sua vitória! Sim, porque o Padre Vicente venceu! Saiu vitorioso dessa vida de 86 primaveras, saiu vitorioso porque lutou o bom combate, mostrou-se homem de fibra e coragem, saiu vitorioso porque foi importante na vida de milhares de pessoas, saiu vitorioso porque foi um grande e dedicado pastor! O exemplo arrasta, Padre Vicente! E seu exemplo de homem de fé e de ação ficará para sempre arrastando multidões.
Despeço-me do senhor, meu querido Tio, meu querido amigo, meu querido padre, meu querido pai. Não pude lhe dar um último abraço em vida. Mas minha certeza é absoluta de que nos reencontraremos um dia. Descanse agora. O senhor fez valer a pena em sua passagem por esta Terra! Que São Sebastião esteja a seu lado e que Nossa Senhora o acolha em seus braços na vida eterna!
Que descanse em paz, sabendo do cumprimento de sua missão aqui na Terra. E que Deus providencie o conforto de quem ficou…
Que o Eterno vos ajude a saber valorizar a herança que tiveste de poder conhecê-lo
Bela homenagem – que pode deixar frutos
TFA:.
Meu Irmão, li devagar, e vivenciei… Que o G.’.A.’.d.’.U.’. fortaleça os que ficam, pois, lá no Oriente Eterno, é dia de festa, de regresso, de retorno de filho, de “depois deste desterro”… Joanisval, condolência é a dor que dói junto, que se sente junto… Meu Irmão, minha condolência!